quarta-feira, 21 de abril de 2010

Desbravadores Admiráveis (4)


Cabeza de Vaca – Pelo Pantanal e Prisioneiro


Vindo desde o litoral de Santa Catarina no Oceano Atlântico em direção ao Oeste, caminhando a pé (e descalço, como gostava de andar, conta-se) e acompanhado de outros espanhóis que compunham sua expedição que partiu da Europa em novembro de 1540, Álvar Nuñez Cabeza de Vaca foi parando de aldeia em aldeia de cada tribo Guarani que encontrava nessa travessia pelo interior do Brasil rumo ao Paraguai. Com um carisma incomum entre os estrangeiros, ia colecionando a simpatia dos índios, iam ouvindo suas histórias e firmando aliados locais.

Foi um dos primeiros homens brancos a se maravilhar da beleza e magnitude das Cataratas da Foz do Iguaçu, palavra do tupi-guarani que quer dizer "Água + Grande" (="yg"+"assu"), ou seja, muita água mesmo, abundante.


Eu acredito que, ao chegar nesta etapa de sua empreitada, Cabeza de Vaca pode ter mudado de estratégia e adiado seus planos iniciais. Evidentemente ele desejava ser o primeiro explorador a encontrar riquezas por aquele sertão, não só pela fama como também pelo quinhão que receberia de tudo o que fosse achado... Para isto ele financiou sua expedição e havia sido nomeado Governador pelo Conselho das Índias espanhol depois da morte de Pedro de Mendonza, o primeiro Governador do Rio da Prata.

Mas quando ficou sabendo que Juan de Ayolas, substituto provisório de Mendonça e a quem devia se apresentar como novo Adiantado nomeado, estava "desaparecido" e que Domingo de Irala se autoproclamou sucessor de Mendonça, e que comandava com violência e tirania antes Buenos Aires e depois Assunção, Álvar Nuñez pode ter decidido não confrontar o valentão ganancioso de poder desde que ainda estava no litoral brasileiro, e ter optado em partir para terra adentro já em busca de seu rico propósito primeiro.

Como Peabiru passava não longe de Assunção, e contando com o apoio dos caciques que encontrou pelo caminho e que sempre o receberam com simpatia, e ainda assumindo que ao se aproximar do povoado de colonizadores ele tenha obtido informações recentes do que estava acontecendo por lá, imagino que tenha se passado pela cabeça de Cabeza de Vaca o seguinte: "Irala escraviza índios vizinhos e oprime os habitantes, está prestes a sair em busca de prata e ouro; se isto acontecer, o povoado abandonado sem proteção sucumbirá, e ele poderia chegar primeiro às 'Montanhas de Prata' e conquistar o tal 'Rei Branco' antes e ser redimido pela Espanha... Não seria justo."

Não sei se foi isto que ele pensou, mas foi isto que aconteceu. Escreveu e mandou avisar Domingo que o novo Governador estava acampado próximo e que ia chegar. Isto abortou a Expedição de Irala (imagine só a ira dele!). Chegou e assumiu o controle do povoado: impôs igualdade de tratamento entre índios e habitantes, apazigou a animosidade das tribos que os cercavam, e transformou-os em aliados.

Quando estava tudo aparentemente calmo e harmonizado, Cabeza de Vaca organizou sua própria expedição, e partiu rumo ao norte atrás de riquezas. Mas ao mesmo tempo que administrava de forma humanitária e pacificava a região, colecionava também alguns inimigos internos. Mal deixou a cidade, Domingo de Irala voltou ao controle com seus desmandos e truculência.

A Expedição de Cabeza de Vaca embrenhou Mato Grosso adentro. Conheceu o PANTANAL. Era época de cheias e chuvas. Nunca viram tanta área alagada! Nem na Flórida. Álvar Nuñez e seus homens se cansaram de andarem encharcados, doentes, perdidos. Alimentos se perderam, animais e pessoas morreram. Decidiu retornar com o que restava do grupo. Febril e fraco, foi interceptado próximo a Assunção e preso por Irala, com uma série de acusações infundadas de traição à Coroa. Encarceirado, viu todo seu trabalho de reconstrução de um povoado digno ser desfeito, enquanto aguardava ser deportado para Espanha para julgamento.

Na viagem de volta, tempestade castigava o navio em alto mar. Os marinheiros supersticiosos achavam que isto era pelos maus tratos que Cabeza de Vaca estava sofrendo... Mandaram desacorrentá-lo da proa do navio, e imediatamente a tempestade parou, como que por milagre.

Veio prisioneiro em março de 1545, ficou em Sevilha de agosto a dezembro aguardando o início de seu julgamento, que se arrastou por longos anos. Nesse tempo escreveu um documento-livro, contando sua versão da história. No julgamento Ilara tinha enviado seus homens como testemunha de acusação, mas as possíveis testemunhas em defesa de Cabeza de Vaca não foram ouvidas, estavam na distante América do Sul. Em março de 1551 foi condenado a pagar uma pequena fortuna ao Tesouro Real, foi destituído do cargo de Adiantado e exilado para África, em Oran, Argélia, por alguns anos (uns quatro). Em 1555 publicou seu livro Comentários, escrito pelo relator da expedição e seu breve governo, Pedro Hernández.

Pouco se sabe sobre como terminou sua vida, há tantas incerteza sobre seus momentos finais quanto sobre seu nascimento. Alguns contam que se reabilitou e chegou a presidir o Conselho das Índias, em Madri, casado, bem sucedido e respeitado. Outros, que ele tornou-se prior num convento em Sevilha, e morreu (entre 1557 e 1564) miserável e na amargura de sucessivos fracassos em vida.

Em termos de empreitadas que se meteu, pode ser visto como um azarado e fracassado, pois não realizou nada do que quis, não encontrou riquezas, sofreu toda sorte de desgraças e comeu o pão que o diabo amassou. Mas é inegável seu mérito e reconhecimento pelo que aventurou, vivenciou e conheceu, e principalmente pela forma que sobrevivia e superava todas as provações que enfrentou.

Álvar Nuñez Cabeza de Vaca: Cristão, Soldado, Tesoureiro, Náufrago, Escravo, Curandeiro, Andarilho, Governador, Pacificador, Conquistador, Prisioneiro, Escritor, Presidente ou Religioso...

Um homem que exerceu ao longo da vida diversas atividades, passou por diversas atribulações, divinamente abençoado viveu muitas aventuras perigosas e fracassadas, foi sempre um sobrevivente e portanto um vitorioso apesar de parecer que não, percorreu a pé milhares quilômetros por terras desconhecidas e lidando com povos diferentes, caminhou e conheceu muito mais do que a maioria dos mortais de sua época ou da nossa, e em ambiente hostil e inexplorado...

Poucos realizaram e experimentaram tanto quanto ele. Marcou presença, época, fez História. Enfim, um talvez injustiçado e com certeza admirável desbravador!


4 comentários:

:.tossan® disse...

Mesdre é cultura refinada! Um dia eu gostaria de saber a história verdadeira do meu país e acho que vai ser aqui. Gostei muito de acompanhar. Abração

Marcus Desidério disse...

Existem tantas grandes histórias mortas nas sutilezas do tempo que precisariamos de milhares de dias para se escrever por alto...
Excelente cara, muito boa história. Essa eu não conhecia...
Pelo visto, foi na época na União Ibérica. Mas essa coisa de Espanhol ficar andando pelo Brasil Português nunca me agradou. Graças a Deus, Portugal se ergueu anos depois e acabou com essa tirania... Abraços cara...
Mas fica o exemplo de coragem e determinação de nossos antepassados...

Andre Martin disse...


Oi MaVi,


Fico contente com sua visita. Obrigado pela leitura. Fico contente que tenha gostado.

Não, isto não foi durante a União Ibérica. Espanha incorporou Portugal entre 1580 a 1640. A.N.C.de.Vaca esteve na Am.do.Norte entre 1527 e 1535, e na Am.do.Sul entre 1541 a 1545.
E nessa época, o Brasil Português ficava a leste da controvertida linha demarcatória do Tratado de Tordesilhas (de 1494), e na prática se estendia só até o conhecido porto de Cananéia (os portugues achavam que ia até Laguna-SC; os espanhóis pensavam que era em Iguape-SP).
Tanto que quando a armada de Cabeza de Vaca chegou ao neste porto em 1541, tomou posse em nome da Espanha.
Além disto, além do litoral, era terra de ninguém, era o SERTÃO, como chamavam todo o restante, não havia nem Brasil Português nem Brasi Espanhol... Era de quem chegasse primeiro.
Eu mencionei Santa Catarina, Paraná, Paraguai, Mato Grosso só para nos localizarmos com referências atuais, mas na época, eles nem sabiam onde estavam.

Agora, quanto à tirania que você insinua, na verdade foi o contrário. Graças à fusão entre as duas Coroas, houve um relaxamento da acirrada disputa por territórios (afinal, agora era tudo do mesmo dono rsrs). Justamente durante essa época, os Bandeirantes adentraram pelo sertão e expandiram o território brasileiro conhecido. Os jesuítas se encarregavam de estabelecer escolas e unidade cultural. Quando Portugal se libertou do domínio espanhol, voltaram os desentendimentos também pelos territórios do Brasil Português versus Brasil Espanhol, como você se referiu, que só foi normalizado com o Tratado de Madri (de 1750). Foi aplicado o princípio do direito privado romano do uti possidetis, ita possideatis (= quem possui de fato, deve possuir de direito). Ou seja, onde as Bandeiras e Entradas deixaram rastros, passou a ser Português (imagino que a Coroa Espanhola não tinha idéia do prejuízo que tomou nesse acordo).

E eu, ao contrário, deprecio o que Portugal fez depois disto. Teve lá suas razões... Para se recuperar, passou a ser mais tirânico com suas colônias, o Brasil sobretudo. Vetou todo tipo de desenvolvimento local para que aqui fosse puramente fonte exploratória. Marquês de Pombal decretou a expulsão dos Jesuítas do Brasil em 1759, e com isto fechou as escolas por todo país, que ensinavam em Brasílica, língua geral normalizada a partir do Tupinambá, e que por similaridade era falado de costa a costa (e no interior) de todo o Brasil, e era também a língua materna dos Bandeirantes Paulistas, que batizaram localidades com nomes Tupi até onde esse idioma nem eram falado pelos índios nativos. Assim, o que era "nossa" língua legitimamente brasileira por mais de 250 anos passou a ser marginalizada, graças ao Marquês de Pombal, que conseguiu assim "ressuscitar" a língua portuguesa e torná-la nosso idioma oficial. O que sempre me deixou revoltado foi nunca ter aprendido ou ouvido isto nas aulas de história nas escolas... O que sei sobre isto e aqui compartilho com vocês, foi "redescoberto" garimpando livros e dicionários de Tupi. Ainda bem que hoje existe Wipipédias para os internautas da vida! rsrs

Abraço!
AndréM

Andre Martin disse...


Marcus Desidério (MaVi):


Seu comentário despertou assunto que merece outro post. Meu comentário acima, portanto, sai deste espaço restrito para ser compartilhado publicamente no blog.

Obrigado pela "inspiração" rsrs

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